A importancia da história indígena nas lutas do tempo presente no Brasil

Giovani José da Silva

Em um momento em que as sociedades indígenas no Brasil e em outros países das Américas se veem ameaçadas na garantia de direitos arduamente conquistados nas últimas décadas, é necessário (e urgente) falar sobre a História Indígena. Esquecidos durante muito tempo pela historiografia tradicional, os povos indígenas em contato com não indígenas buscam visibilidade para as lutas e o protagonismo/ a agência outrora negados. Para tanto, a colaboração de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, especialmente das Humanidades, em perspectiva inclusiva, tem permitido cada vez mais que sociedades indígenas antes relegadas aos “bastidores” ocupem o “palco” principal da História, na feliz e provocativa expressão cunhada pela historiadora brasileira Maria Regina Celestino de Almeida.

E por que falar em indígenas na História, uma vez que o Brasil é hoje um país predominantemente cristão (católico) e falante da língua portuguesa, duas das heranças deixadas pelos conquistadores ibéricos? Ora, para quem acredita que o Brasil seja um país monolíngue, é bom que se saiba que ainda são faladas pelo menos umas 180 línguas indígenas no país, sobreviventes a massacres, tentativas de extermínio, “guerras justas”. É importante frisar, também, que tanto a língua como a religião foram impostas pelos colonizadores sob o signo de intensa violência colonialista, impedindo a manifestação de tudo o que fosse considerado fora da “ordem natural”, ou seja, o que não estivesse de acordo com os ditames da Igreja e do Estado.

No Brasil de hoje existem mais de 250 etnias indígenas, presentes em todos os recantes do imenso país-continente! Há línguas que são faladas por mais de 30.000/ 40.000 pessoas e outras por um diminuto grupo de indivíduos. Apesar disso, ainda se conhece muito pouco (ou quase nada) sobre quem são, onde vivem, quantos são, o que desejam para suas vidas, dos mais de 800.000 indígenas autodeclarados que vivem no país. Assim, diferentemente de outros países americanos – como Bolívia, Guatemala e Peru – há uma grande diversidade de povos, enquanto o número de indígenas corresponde a menos de 1% da população. Nos países citados a situação é inversa: menor diversidade e maior quantidade de população indígena.

As escolas brasileiras, infelizmente, ainda reproduzem estereótipos, preconceitos e estigmas sobre os povos indígenas, tratados genericamente como sendo todos iguais, primitivos e atrasados. Isso quando não obliteram as presenças indígenas em manuais escolares e nas aulas de História, naturalizando práticas discriminatórias e incentivando o desprezo e o descaso. Tudo isso ocorre apesar de haver uma lei (Lei 11.645/2008) que obriga os estabelecimentos de ensino no país a tratar das histórias e das culturas indígenas, além de africanas e afrodescendentes, em todos os componentes curriculares escolares. No Brasil, por incrível que possa parecer, precisa-se de leis para o reconhecimento da diversidade étnica e cultural da qual todos os brasileiros são descendentes e tributários.

“Precisamos descobrir o Brasil”, dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade e, junto com ele, descobrir as Américas, também. No Brasil, além do desconhecimento sobre as sociedades indígenas do passado e do presente, há um enorme descaso com a história de nossos vizinhos, colonizados sobretudo por espanhóis. Pouco ou nada se sabe sobre o Paraguai, a Argentina, o Chile, o Peru, por exemplo. Daí porque muitos jovens brasileiros apresentam absoluta falta de conhecimento pelo que acontece/ aconteceu com indígenas e não indígenas no continente que habitam. Tal situação acaba por naturalizar atos de violência extrema contra os povos indígenas, além de colaborar para um clima de total falta de empatia pelos indígenas e suas histórias.

Demonstrando desconhecer a temática indígena e não estar preparado para dialogar com ela, o atual governo brasileiro tem sinalizado ações que podem comprometer o presente e o futuro das sociedades indígenas. Com afirmações estapafúrdias, tais como “os índios querem ser como nós!”, representantes políticos apregoam, por exemplo, que a entrada de mineradoras em áreas indígenas, atualmente protegidas por legislação, representará benefícios para indígenas que, na visão estatal, se encontram em situação de atraso, impedindo o progresso e o desenvolvimento do país. Ora, nada mais falsas tais afirmações quando se pensa na dolorosa história de homens e mulheres indígenas que, ao longo do tempo, lutam para sobreviver física e culturalmente em um país que lhes dá as costas.

Por isso a importância da História Indígena em países como o Brasil: a perspectiva diacrônica, aliada a outras áreas do conhecimento – tais como a Arqueologia, a Antropologia, a Geografia e a Linguística –, permite entrever não apenas o passado das populações indígenas, mas revela o presente e  projeções de futuro para tais populações. Nesse sentido, o uso de documentações escrita, oral, iconográfica e outras auxilia no desvendamento das trajetórias espaço-temporais de diferentes povos que habitaram/ habitam as Américas. Essas trajetórias foram marcadas por dor, sofrimento, resistências, lutas, extermínios. É certo que houve muitas mortes e milhões desapareceram por meio de ações demandadas pelo Estado.

Recuperar vozes indígenas apagadas, retirando-as das brumas do esquecimento, é (re)encontrar formas de resistência/ (re)existência indígenas. Há muito a ser feito, ainda, e nessa verdadeira “guerra”, que conta hoje em dia com indígenas pesquisadores e se trava cotidianamente, as armas já não são apenas bordunas, porretes, arcos e flechas, além de não se realizarem mais apenas nas florestas/ selvas da outrora América Portuguesa, hoje Brasil. Caneta, papel, computador são indispensáveis para as lutas do tempo presente, que se desenrolam em tribunais de Justiça e em outros espaços. Ajudar a reescrever a História do Brasil, dolorosamente entrelaçada às histórias de indígenas, africanos e seus descendentes e outros migrantes, com as dores e as delícias do ofício, é tarefa premente!

Máis artigos

Sao Paulo, 1972. Doutor em História (UFG, 2009), com Pós-Doutorado em Antropologia (UnB, 2013) e em História (UFF, 2017). Atualmente, é professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap), onde leciona Metodologia do Ensino de História na graduação e na pós-graduação. É autor, dentre outras obras, de Atikum – os índios negros de Mato Grosso do Sul (Editora CRV, 2019).

Comparte

Facebook
Twitter
WhatsApp
Email

Comentarios

Deixa un comentario

Publicidade